sexta-feira, 20 de março de 2009

Embalagem


— Farra com dinheiro público no Senado Federal! — Sem que o apresentador do jornal concluísse a notícia que mostrava mais um escândalo em Brasília, dessa vez por conta do excesso de diretores, desliguei a TV e fui para o quarto. Mas não pense que eu estivesse ficado revoltado com a reportagem: é que corrupção política já virou assunto tão corriqueiro e recorrente, que uma matéria sobre o jardim da Casa Branca chamaria mais minha atenção. Foi por mera falta de interesse mesmo, até porque já tinha ouvido sobre isso havia pouco, pela CBN, voltando do trabalho.

Fui me deitar. O sono não veio. De Internet não estava a fim.  Decidi, então, fazer uma limpa no armário, quando encontrei, guardado num livro didático, uma embalagem de Sonho de Valsa, que me reportou a um dezembro passado:

Eu já tinha retirado os cartazes das paredes. Deixei apenas o mapa do Brasil no fundo, já desbotado, a pedido da professora que usaria a sala no próximo ano. A sala já estava seminua. Era a última semana que eu passava com minha turma, uma quarta série. Foi uma semana meio nostálgica, afinal, eu já estava com aquela classe desde o ano anterior, e em período integral. Já tinha me afeiçoado com cada aluno, mesmo os mais indisciplinados, e conhecia um pouco de cada um deles: qualidades, manhas, carências. Alguns, com histórias de vida muito tristes, como a de uma menina cuja mãe cometera suicídio, ou a de um garoto que presenciava agressões físicas do pai contra a mãe, ou ainda a de um outro que precisou ser entregue aos cuidados de um orfanato, mesmo não sendo órfão. Situações que fizeram com que eu perdesse rápido a inexperiência como docente de Ensino Fundamental.

A sala era mais ou menos assim: lembro que na fila da direita, perto da porta, sentavam-se três meninas crentes, dessas igrejas que não permitem que as mulheres usem calças nem cortem o cabelo. Eram excelentes alunas, caprichosas, mas que não participavam de atividades culturais, porque seus pais estavam convencidos de que cantar ou dançar fosse coisa do Diabo. Atrás delas, sentava-se um piá negrinho que, de anjo, só tinha o nome. Contava piadas como ninguém: um sarrista nato, que me fez gargalhar várias vezes durante a aula. E, ao lado dele, ficava um guri preguiçoso que escondia o lápis pra ter a desculpa do porquê  não fazia as tarefas. A sua fila era composta só por primos, unidos em tudo: só brincavam e brigavam entre si. Ficava na terceira fileira um piá de olhos grandes que punha o fervo na turma. E lá no final da sala, na última fileira, perto da janela, estava a Ritinha, uma menina calada, magricela, despenteada, voz baixa. Sua mãe é doméstica e o pai, que trabalhava no corte de cana, tinha falecido havia pouco tempo. Toda semana ela vinha me contar alguma coisa, mas em sentenças curtas, pontuais.

Enquanto eu corrigia o caderno de um aluno na minha mesa, vi que a Rita aguardava de pé sua vez de falar comigo, segurando dois bombons. Após o último visto, perguntei o que queria. Antes de falar, mordendo os beiços com cara de contentamento, depositou um bombom sobre meu livro de chamada, bem devagarinho. Sua mão, encardidinha, com esmalte pink descascado, mais parecia estar colocando uma pepita de ouro, tal era a solenidade que demonstrava (o chocolate valia mesmo ouro). Por fim, me disse:

— Psor, a mãe vendeu um berço velho que tinha lá em casa e até fez compra ontem. Daí ela deu um real pra mim e pra minha irmã. Ela guardou o dinheiro. E eu comprei dois bombom. Esse aí é pro senhor.

O chocolate daquela menina pobre era um agradecimento. E, enquanto ela voltava correndo para o seu lugar, alternando suas perninhas finas – dois palitos – eu me segurei pra não chorar.

Obrigado, Ritinha! Seu bombom teve muito valor. Para mim, ele eles compensam as notícias diárias de corrupção e violência. Ele me diz que o Brasil vai ser melhor daqui uns tempos.


quinta-feira, 19 de março de 2009

O bom poeta não lê poesias


O texto a seguir tirei-o um de e-mail que que recebi do poeta peabiruense Arleto, a quem agradeço de coração pela generosidade.

Fala, Fabio!

Parabéns pelas conquistas. Daqui a pouco o Pulitzer.

Orgulha-me ver o nome de nossa pequena cidade como uma lépida intrusa nestes ares longínquos. Em breve, quando distante desta terra vermelha, o fim daquela eterna pergunta:

― De onde?

― Peabiru!

― Como?

― “P-e-a-b-i-r-u!”

(Sim, bairrista, sempre).

Por  Mário Quintana, “o bom poeta não lê poesias, lê anúncios de jornais”. É o que vejo em tua obra: a vida, o tropeção na calçada, o portão batendo no batente, o leiteiro buzinando, a fé indo e voltando, enfim, a existência dos dias sucessivos.

Mas chega dessa epistemologia de boteco, antes que seu PC tome isto como uma mensagem virótica e acabe me deletando.

Parabéns. E que sua bússola sempre aponte para o sucesso.

Arléto

quarta-feira, 18 de março de 2009

É hora de dar uma espiadinha!


O Big Brother cresceu. O Grande Irmão, personagem fictício do romance "Mil Novecentos e Oitenta e Quatro" ("Nineteen Eighty-Four"), concebido pelo britânico Eric Arthur Blair em 1948 e gerado pelo público brasileiro desde 2002, conseguiu entranhar-se no nosso imaginário, onde ganhou forma e morada, adaptando-se perfeitamente à nossa realidade tupiniquim, inculturando-se por aqui no tempo e no espaço. O cenário, portanto, não é mais a Oceania, e 1984 ficou para trás. Nestes tempos de New Age, não são mais as câmeras quem nos fiscalizam (embora elas estejam por aí, como redutores de velocidade ou inibidores de furto em estabelecimentos comerciais); na Era de Aquário, as sardinhas se aprisionam, por vontade, em aquários-casas de vidro e, lá de dentro, tentam agitar as águas ao redor, confirmando, assim, a ideia de Jean-Paul Sartre (cantada pelos Titãs) de que "o inferno são os outros". Ou seja, graças ao foco que se dá a qualquer indivíduo, graças aos holofotes projetando luzes ofuscantes sobre sua vida particular e mera, escancarada às espiadinhas do mundo, arreganhada aos olhares dos outros, "do inferno", à pauta incansável de programas (fúteis?) de fofoca, é que se cria uma novela superatrativa, mais interessante que Pantanal ou Caminho das Índias, escrita e encenada simultaneamente, com capítulos que duram o dia inteirinho!

E esse confinamento zoológico-humano dirigido nos reality shows mete-se de mansinho nos nossos relacionamentos sociais. É por causa dessa clausura assistida que acabamos tendo a impressão de que somos continuamente espiados, mesmo quando não exista alma viva por perto. Só que essa sensação não nos é incômoda: as câmeras imaginárias nos dão a possibilidade de nos tornarmos, qualquer um de nós, astros famosos, celebridades importantes.

Lembra-se de Gandhi, ou de Che Guevara, de Martin Luther King, de Madre Teresa ou ainda outros tantos que inspiraram as multidões? Pois bem, eles tinham características firmes, marcantes, e de tal modo definidas que os fazia únicos, arrebatadores: mais que de desejo, pontos de referência. Até bem pouco tempo atrás, sabíamos que o Milton era o Milton Nascimento, um cantor excepcional, compositor único e que, por isso, devia ser devidamente prestigiado, valorizado. Agora o tom é outro: a revolução da informação e da tecnologia fez com que aquelas personalidades, semideuses, fossem derrubadas à baixeza da simplicidade de pessoas anonimamente comuns, retirando daqueles o privilégio da intocabilidade e dando a estes a chance do estrelato, de serem alvos da idolatria. Vem daí a explosão de livros biográficos: hoje é possível saber detalhes íntimos tanto da vida de Bruna Surfistinha, quanto de Edir Macedo (numa das biografias mais lidas no país no ano passado!); daí também a popularidade dos blogs (espaço virtual onde muitos de seus autores fazem questão de divulgar desde o que comeram no almoço, aos motivos do término do namoro na última balada).

Elis que me desculpe, mas nossos ídolos já não são os mesmos: agora os deuses são mortais, e os mortais sobem à honra dos altares. Tornam-se ídolos, já não mais pelo que fazem, mas pelo jeito como se comportam: de 12 brothers, elege-se apenas aquele cujo estereótipo mais agrada ao grande público. O que eles fazem não vale nada. O que importa é como eles vivem na "nave-mãe": sua maneira de comer, falar, beber, beijar, tomar banho, dançar, brigar e peidar.

Enquanto isso, nós também nos confinamos. Continuamos sendo espiados por uma câmera interna, assistida por um expectador imaginário, externo. De vez em quando, tememos que ele nos mande para o paredão, ou que, na pior das hipóteses, nos elimine.

Não é estranho? Porque, no fundo, o Big Brother é um Big Self. E, caso assinasse o pay-per-view, Sartre atualizaria sua afirmação: "o inferno somos nós mesmos". Não sei se o Milton Nascimento assiste ao BBB, mas deve estar cantando com entusiasmado "Eu, Caçador de Mim".

Milton Nascimento - Caçador de Mim


sábado, 7 de março de 2009

O leiteiro


Revirando a esmo papéis amarelados [não sei porque faço isso de vez em quando], encontrei, ainda incompleto, um conto que comecei a escrever no ano 2000. Nem me lembrava mais dele. Decidi re-escrevê-lo [com hífen mesmo, já que, agora, separa-se o prefixo do segundo termo quando vogais iguais se encontram].

A trama é minha. Mas o cenário, escuro e empolgante, roubei de um poema fantástico do Drummond. Assim, enquanto a prosa não fica definitivamente pronta, posto o tal poema, que é o meu preferido.

A morte do leiteiro

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.



segunda-feira, 2 de março de 2009

Mais um!


Fiquei com a 3ª colocação no 27º Concurso Internacional Literário das Edições A.G., cujo resultado foi divulgado na tarde de ontem. Nas primeiras colocações, estão poetisas portuguesas. Esta será minha segunda participação em antologias este ano. Tomara que não sejam as únicas!

O poema premiado, Bússola, está nas postagens abaixo.