quinta-feira, 4 de julho de 2019

Moro & Dallagnol: uma novela da Globo


Vinte e oito de agosto de 2017. Pelo tapete vermelho, pomposamente estendido no Park Shopping Birigüi, altivo, o então juiz Sérgio Moro desfila, de braço dado com sua cônjuge, rumo à Sala 1 do cinema anexo. Num assento de destaque, ladeado da amada Rosângela, de Dallagnol – o do PowerPoint – e de baldes de pipoca, Moro é aplaudido pela plateia curitibana, enquanto assiste, felicíssimo, ao pré-lançamento de Polícia Federal: A Lei é para todos, longa-metragem baseado na Operação Lava Jato, sob inédita "consultoria" da própria PF. Certamente, um momento de glória para o célebre maringaense, após a sentença que emitira um mês antes, condenando o ex-presidente Lula a nove anos e seis meses de prisão, por "fato de ofício indeterminado", seja lá o que isso queira dizer.

Não terá sido, contudo, a única vez em que a história oficialmente contada da perspectiva dos mocinhos virou ficção cinematográfica. Em 2018, coube ao cineasta José Padilha inspirar-se nas aventuras dos garotos da "República de Curitiba" para produzir O Mecanismo, série lançada mundialmente pela Netflix que carrega nas tintas para aprofundar o contraste barroco entre o bem e o mal, entre Moro – um santo de balança na mão e venda nos olhos – e Lula – um capeta em forma de político –, de tal modo que a famosa frase de Romero Jucá sobre "estancar a sangria" – por meio de "um grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo" – foi parar na boca da personagem "livremente inspirada" no petista. Tudo para impregnar na figura do ex-presidente a condição do típico antagonista.

Eis que essa narrativa, também canonizada pelo Jornal Nacional em reprises e remakes diários ao longo dos anos, foi, nas últimas semanas, improvisamente destruída pelo norte-americano Glenn Greenwald, um jornalista reconhecido internacionalmente que escancarou aquilo que as telas – do cinema e dos telejornais – não tinham mostrado até então. Os vazamentos das conversas pouco republicanas entre o então juiz Sérgio Moro, hoje ministro do adversário de Lula, e Deltan Dallagnol – coordenador da força-tarefa – revelam que houve, senão um cambalacho entre eles, uma evidente parceria – demonstrada por inúmeros papos via Telegram, hoje públicos graças ao The Intercept – para condenar Lula sem provas e – como reconhece Dallagnol nesses vazamentos – sem convicção.

Tal reviravolta revela que a maior operação anticorrupção do mundo, como se autoproclamava a Lava Jato, tem muito mais de novela da Globo, produto televisivo mais visto no Brasil, que propriamente obra da Sétima Arte: não apenas porque o caso Morogate fez ressurgir, nas redes sociais, o inesquecível Tonho da Lua (Marcos Frota), personagem de Mulheres de Areia, e o Pavão Mysteriozo do cantor cearense Ednardo, da clássica trilha sonora de Saramandaia, ou pelo fato de que a emissora carioca é mencionada inúmeras vezes nos chats como atriz coadjuvante e coautora – nunca como figurante! – da trama, mas, sobretudo, porque é possível ler, nesses imprevisíveis desdobramentos, curiosas características de teledramaturgos globais, como Aguinaldo Silva – bolsonarista, autor de Roque Santeiro e Senhora do Destino – e João Emanuel Carneiro – que escreveu Avenida Brasil e sem ideologia política notória –, nos acontecimentos e personagens do enredo que demonstra, nesse caso, que a vida é que imita a expressão artística mais amada pelos latino-americanos: a telenovela.

Além da política, tema recorrente nas novelas desde O Bem-Amado, julgamentos – justos ou questionáveis – sempre foram retratados pela teledramaturgia, geralmente, na reta final das produções ou, como é o caso da Tupi em A Ré Misteriosa e O Julgamento, na história inteira, da qual o próprio judiciário era protagonista. O que o núcleo artístico da Globo ainda não produziu – e, portanto, ainda não entrou "para os anais e menstruais de Sucupira e do País", como talvez dissesse Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo) no caso em tela – é esta brusca guinada que Glenn impôs à narrativa oficial, que, "deverasmente", deixou os fãs do ex-magistrado com cara de seu-Malaquias-cadê-minha-farofa.

Ainda assim, o revés é similar, por exemplo, ao que vimos em A Favorita. Nesse folhetim de João Emanuel, quem o foco narrativo nos fazia supor ser a mocinha era, na verdade, a vilã: embora jurasse inocência, o desenrolar dos capítulos revelou que Flora (Patrícia Pillar) tramava com Silveirinha (Ary Fontoura) contra Donatella (Claudia Raia). Na novela da vida real que influenciou as eleições de 2018, resultando na prisão do líder absoluto nas pesquisas e na vitória de seu opositor – vítima de uma facada verossímil – o juiz do processo abandonou a necessária imparcialidade para combinar estratégias de acusação com os procuradores, o que é vedado pela Constituição Federal, pelo Código Penal, pelo Código de Ética da Magistratura e, e particular, pelo bom senso que pressupõe uma equidistância isonômica do juiz em relação às partes.

É verdade que, mesmo antes de os diálogos impudicos virem à tona por meios ainda sigilosos, Moro sempre deu bandeira de que seguia um roteiro próprio, discrepando da equanimidade romantizada que Bonner lhe atribuía todas as noites antes da novela das nove, já que o magistrado nunca escondeu uma proximidade pública com adversários históricos do PT, quando as lamparinas do juízo já pareciam apagadas. Participou, por exemplo, de muitas solenidades com o tucano antipetista João Doria – nem João (Tarcísio Meira) e Jerônimo (Claudio Cavalcanti), os Irmãos Coragem mais chegados, frequentaram juntos tantos eventos – e permitiu que seus lábios estreitos fossem fotografados, aos risos, à lábia de Aécio Neves – só as bocas de Jade (Giovanna Antonelli) e Lucas (Murilo Benício) de O Clone eram mais próximas! –. Até Beto Richa tem closes ao lado do então juiz: cada mergulho é um flash! Não bastasse isso, os diálogos revelados em 18 de junho mostram que, para não "melindrar alguém", Moro questionou que o maioral do PSDB, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, fosse ao menos investigado: "prevaricação" compartilhada por Dallagnol, avaliou o jornalista responsável pela divulgação dos vazamentos, para não favorecer Lula junto à opinião pública. Na acusação, vale relembrar, o mesmo empresário que delatou favores ao petista no bendito sítio, relatava pagamento de uma bolada a FHC por ocasião das eleições. Insha’Allah! Esse capítulo da novela, em especial, faz o telespectador mais atento inferir que o juiz decidia politicamente quem o Ministério Público Federal devia mirar.

Falando em Dallagnol, a figura devota e cândida do "procurador longilíneo de bochechas rosadas", como um site de palestras anunciava o fervoroso batista que elaborou o espetáculo midiático sobre a alegada culpa do ex-metalúrgico que ascendeu ao cargo máximo do país, apesar de não estar certo da solidez dos argumentos dos próprios slides – como demonstram seus diálogos vazados – encontra possível paralelo numa personagem cômica de Aguinaldo Silva do final da década de 80: Perpétua (Joana Fomm), a irmã beata de Tieta (Betty Faria), que detestava o fato de que uma nordestina, que saiu humilhada de Mangue Seco, fosse dar a volta por cima em São Paulo e ser amada pelo povo simples. Austera e intransigente, apontava pecados em todos: "quenga!", sentenciava, sem piedade, em sotaque nordestino, até às amigas próximas que tentavam a felicidade. O final revelou, entretanto, que a eterna viúva conservadora era, na verdade, uma grande hipócrita: guardava um segredo imoral numa caixa branca dentro do guarda-roupa. Eta lelê!


A caixa branca de Dallagnol é, por assim dizer, a caixa preta tragicômica do lavajatismo: por ela, sabe-se que seus discursos eloquentes com típico sotaque pato-branquense – muito parecido, aliás, ao da Bozena em Toma Lá, Dá Cá, também nativa do Sudoeste Paranaense – tinham alvo certo: Luiz Inácio. Os polêmicos diálogos sugerem uma manipulação da operação, um afrouxamento dos critérios de investigação, de modo que tudo fosse como no seu PowerPoint, ou seja, informações aleatórias artificialmente justapostas apontando, como tridentes afiados do Tinhoso, na direção de Lula do Agreste.

A Vaza Jato, como estão chamando o escândalo nas redes sociais, faz mesmo crer que a Lava Jato seja, de fato, uma típica novela da Globo, com muitos núcleos, personagens e reveses. Greenwald divulga, nos trinques e com a colaboração de outros veículos e jornalistas – incluindo o insuspeito Reinaldo Azevedo, criador dos termos "petralha" e "esquerdopata" –, as informações eletrizantes em capítulos bem divididos: até agora, só foram sete. Quantos serão ao todo? "Mistéééério", diria Dona Milu (Mirian Pires). O fato é que, ao término de cada um, surgem reclames, como chamadas das cenas dos próximos capítulos, o que deixa os telespectadores grudados à História, com agá maiúsculo. Tô certo, ou tô errado?


A julgar pela calma com que se desviou do cerne das perguntas na CCJ do Senado, o ex-juiz – e, quiçá, seu fiel escudeiro evangélico – talvez imagine que as cenas mais bombásticas já tenham sido exibidas e que, portanto, a audiência tenda a cair. Stop, Salgadinho! Glenn já antecipou que o melhor está por vir: é sempre assim nas novelas. Não seria de se duvidar que, nos últimos capítulos, um novo mistério, similar ao "Quem matou Odete Roitman?" de Vale Tudo, ganhe um revival eletrizante. É justo. É muito justo. É justíssimo!

O fato é que, a se intensificarem os vazamentos, em breve, veremos Lula, de vermelho-petê, em câmera lenta, retornando triunfante do cárcere da sede da PF em Curitiba – onde continua preso apesar das revelações – para repetir a principal frase de O Outro Lado do Paraíso: "Vocês não imaginam o prazer que é estar de volta"...


Fábio Sexugi